sábado, 7 de abril de 2012

O sacrifício da rosa


Rubra entre folhas verdes e espinhos, nasci rosa. Desabrochei na manhã fria, brilhei ao sol.
Eu nasci rosa porque escolhi assim, ou assim foi determinado? Por Deus ou pelo acaso? O que importa isso agora, se já estou aqui, rosa, nesta manhã fria, brilhando ao sol?
E nasci para quê?
Passa por mim a criança e não me nota. Passa o velho e me observa, admira e vai embora. Vem o moço enamorado e imagina que eu agradaria a sua amada. Tenta em vão me pegar, mas não alcança o galho.
Da sacada o observa a mulher madura. Compreende a intenção do moço e oferece-me. Bem sabe ela que é pra outra, certamente mais jovem. Mas eu estou ao alcance das mãos da mulher e a roseira lhe pertence, como parte do seu jardim.
Ela vai para dentro e volta com a tesoura. Corta meu galho, retira os espinhos e me entrega ao jovem. Lá vou eu, sem dor alguma. Somente a roseira sentiu o corte. Mas nada disse.
O jovem caminha apressado e para diante de uma casa, toca a campainha e aguarda. Aparece a moça e recebe-me das mãos do namorado. Ela procura meu perfume e sorri para ele. Beija-lhe a face e diz palavras gentis.
Seguem os dois abraçados e eu os acompanho, levada pela mão da jovem. Meu passeio não é tranquilo. Ela corre, rodopia, os dois se abraçam e eu voo ao sabor dos movimentos daquela paixão.
Envaideço-me pensando ter contribuído para aquela história de amor. Serei lembrada, talvez guardada entre as páginas de um livro.
De repente, os dois entram por um portão, caminham por uma aleia sombreada, ladeada por túmulos, entre os quais o casal se esconde, na quietude da manhã ensolarada, na mansidão daquele jardim, onde apenas almas passeiam, invisíveis.
No calor dos abraços, na fúria dos beijos e das carícias eu caio sobre uma lápide e ali me deixam. “Aqui jaz Fulano de Tal – Saudades Eternas de Seus Filhos”.
Agora sei para que sirvo. 

sexta-feira, 6 de abril de 2012


Ana Maria é tão feliz!
Que vida perfeita tem Ana Maria. Eu a vejo todo dia, descendo a rua para comprar umas “coisinhas” no mercado. Engraçado, como faz diferença comprar “umas coisinhas” ou fazer compras no mercado. Fazer compras parece que custa o suor do rosto, as sacolas pesam nos braços e nelas há mais necessidades do que prazeres.
As sacolas da Ana Maria só devem trazer coisas gostosas e crocantes. Nas minhas eu trago sabão pastoso, água sanitária e um quilo de feijão preto. Mas feijão preto é muito bom, eu garanto. É delicioso com arroz branco e alface. Palavra de honra que eu gosto. Me faz lembrar do dia em que eu tive que almoçar no colégio. O primeiro almoço fora de casa, sem mãe nem pai, sob o olhar severo das freiras do São Marcelo. Elas eram boazinhas comigo. Pena terem me expulsado da escola, pois eu era irmã de meninas malcomportadas. Eu era o mal comportamento em potência. Inútil tentar me manter numa instituição tão digna. Minha irmã beijava a boca do namorado e se recusava a reconhecer-se em pecado. Eu nem tinha boca ainda. Era só uma criança tímida e confusa.
Mas então, o arroz com feijão e a alface que elas me serviram era até bom. Muito bom mesmo. Tinha também um bife, que eu tive que lutar para cortar em pedaços, coisa que nunca havia tentado antes. Viu, como a escola ensina?
Até hoje, quando como alface junto com arroz e feijão preto, tem que ser o preto, sinto o gosto daquele sábado de horário integral no São Marcelo. Não me lembro de nada além do almoço. Aquele silêncio, as freiras servindo a comida, as meninas comendo até não sobrar nada dos pratos. O motivo do evento era uma preparação para a Primeira Comunhão, que é quando as crianças são devidamente preparadas para poderem receber o Corpo de Cristo. Devo ter aprendido naquele dia o que era o inferno, quem era o demônio, como fazer para não pecar, como me penitenciar dos pecados cometidos, como viver uma vida livre de tentações. Puxa! Que dia instrutivo. Tanto que não me lembro de nada do que me ensinaram. Só esse inferno constante, esses demônios vigilantes e cruéis, que me espiam atrás da porta. Acho que o céu deve ser no máximo o arroz com feijão e alface. A parte do bife são as lutas para se chegar lá.
Ah! Mas a Ana Maria! Era dela que eu queria falar. São os tais demônios que me perturbam o raciocínio e me fazem mudar de assunto.
Ana Maria tem marido, mora numa casa linda! Já reparei que agora o bom é usar muito essa palavra: “lindo!”. Assim, com exclamação. Pode ser “linda!” também. Ou lindos!, lindas!, lindíssimos!!!. Aceitamos variações. Só não aceitamos o feio, o trágico, o mal, o doente. Todos têm que ser felizes, como nas margarinas e nos bancos. Eu quero dizer nos anúncios, mas acho que ninguém mais repara que um anúncio é apenas propaganda para vender alguma coisa. Acho que a gente acaba acreditando e querendo viver a vida como a Ana Maria, descendo a rua para comprar umas coisinhas, para preparar um jantarzinho romântico, assistir um filminho no sofá e depois fazer um sexozinho gostoso com o marido, fiel e previsível, que chega do trabalho. Bom, a Ana Maria também trabalha, mas ela AMA o que faz. Seu trabalho é super estimulante e ela está super bem, ganhando um salário muito bom.
Como eu fugi do assunto. Essa Ana Maria não me deixa pensar direito. Deve ser inveja. Eu queria ser como ela, mas não consegui ainda entender em que planeta ela vive. O fim da rua dela é do outro lado do meu.
Qualquer dia eu descubro.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Velhos

“O motorista parou no ponto e o sinal fechou. Perdemos o sinal por causa do velho. O velho demorou a entrar no ônibus, porque os degraus são muito altos e o velho carregava uma sacola cheia de compras. Eu estou em cima da hora! Por que esses velhos não ficam em casa, vendo televisão? Tem que sair pra fazer compras? Vamos ter que esperar quase três minutos até essa porcaria de sinal abrir de novo. Isso se não aparecer uma velha carregada para fazer companhia ao outro.”
Falava a moça, ao celular. E continuou:
“Depois ele demorou para passar na roleta, por causa do cartão que não funcionou. As sacolas pesadas atrapalhavam o movimento dos braços e tudo mais. O cobrador não ajudou e o velho quase caiu com o peso da tralha!”
 Ela falava sem inibição, pouco se importando com o fato de que o “velho” podia não ser tão surdo quanto ela devia imaginar e estaria ouvindo aqueles comentários tão cruéis.
Dentro do ônibus ninguém se manifestou. Nem eu. Todos silenciamos, fingindo não ouvir, compactuando com a impaciência, a arrogância, a intolerância, esquecendo-nos do mais banal: a velhice é o futuro de todos os que não morrerem jovens. Não há outra saída. Por mais que nos mantenhamos saudáveis, ativos e bem cuidados, quem nos garantirá contra a nossa própria decrepitude?

Mesmo o bebê mais festejado de nossa família está a caminho de ser apenas um velho, ou uma velha, se tiver a ventura de permanecer vivo por muitos anos. E sofrerá os efeitos do tempo inexorável.

Onde foi parar a pessoa que o velho foi? Por que não nos lembramos de toda sabedoria que está por trás dos tropeços e dos tremores?

Muitas vezes tratamos os idosos com uma falsa paciência, falamos com eles como se fossem crianças surdas e estúpidas, que precisam de vozes infantilizadas, as mesmas que usamos com bebês e cachorros. São velhos, são pessoas que já viveram mais! São mais experientes, com certeza. Carregam dentro de si um mundo de histórias, dores, amores, conquistas, derrotas e superações. Só não podem com o tempo. Nenhum de nós poderá.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Retirante



Estranho, mas eu tenho esse sertão dentro de mim. Todo aquele chão seco, o céu todo azul de pouquíssimas chuvas.
Tenho a lembrança do sabor simples da pouca comida, quase nada; o som dos calangos correndo pela terra esturricada e o estalido do mato seco. Tenho paixão pelo imponente mandacaru e um enorme afeto pelos homens rudes, de chapéu roto e poucas palavras.
Nascem as crianças que  brincam com quase nada, comem quase nada,  falam pouco, numa língua quase incompreensível, estranha para nós que somos fartos de tudo.
Eu sou uma degredada e nunca estive na terra que me abandonou. Sou a retirante eterna, deslocada em tamanha abundância, sem filhos, sem chão, com excesso de umidade, o coração opresso e a alma em vão. 

domingo, 14 de agosto de 2011

Ladainha para um pequeno Jesus

Nem bem nasceu o pequenino
E já esperavam dele
Prediziam grandes feitos
Prodígios
E o menino só queria brincar

Foi-se criando, crescendo
Forte e brando, delicado
O povo olhava e via milagres
Em seus rabiscos na areia
O menino olhava o céu
Onde um passarinho voava
E todos já deduziam
Que com Deus ele falava
E o menino, assim sozinho
Ia criando na mente ideias muito diferentes
Das que o povo esperava
O menino, coitadinho
Nem sabia o que pensar
Só queria um companheiro
Para no terreiro brincar

Um dia cresceu a criança
Um rapaz de todo comum
Não operou milagres, não rezou nem jejuou
O povo desencantado
Quase expulsou o coitado
Pois que tanto esperaram
E ele nem se dignou
A Maria da feira adoeceu
De olhado ruim, na certa
Criou chagas e tumores
Sofria e gemia nos seus estertores
Chamado que foi o rapaz
Para curar a coitada
Fugiu em desabalada
Que não se achou por três dias
Voltou cabisbaixo e sentido
Arrumou a trouxa e partiu
Foi isso
Ninguém viu
Para onde foi o menino
Que um dia pequenino
Só queria de verdade
Viver seu próprio destino.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

No meio do carvão

- Eh, carvoero!
Só mesmo estas crianças raquíticas
Vão bem com estes burrinhos descadeirados.
A madrugada ingênua parece feita para eles...
Pequenina, ingênua miséria!
Adoráveis carvoeirinhos que trabalhais como se brincásseis!
(Meninos Carvoeiros  -  Manuel Bandeira)

Era de manhã, bem cedinho. Só os galos anunciavam o dia que ninguém reparava, por causa do escuro céu lá em cima e da fria noite dentro de casa.
O menino, magrinho que nem tipiti escorrido,levantou-se espriguicento, sonhando com um dia de descanso, na sua pequena e dura vida.
Todos os dias o mesmo pão duro, roído a caminho da escola, lá longe; longa jornada a pé descalço. Lá vai o menino magrinho.
Nas mãos um caderninho e na cabeça uma idéia vaga de um futuro “um dia”, uma vida diferente daquela lida sem vista. Lá vai o menino.
Mas a aula é tão comprida, tão complicados rabiscos, que o menino cochila, em cima da mesa, tosca madeira lascada, por onde já passaram tantos meninos sonolentos, magrinhos e famintos, daquela terra distante de tudo.
- José! Acorda meu filho!
- Senhora? Desculpe professora. Tava dormindo ,não senhora. Tava era raciocinando.
- Então responde a pergunta que eu fiz. Quem descobriu o Brasil?
A melhor parte de tudo era a hora da merenda, quando tinha. Às vezes era só mingau ralo de fubá. Mas quando era caprichada, com pedacinho de carne seca! Ah! Delícia de escorrer pelo queixo!
Acabava logo a aventura da escola. Antes do meio-dia, já estava o José a caminho de casa. Lá chegando era direto trocar de roupa para a jornada no meio do carvão, ajudando a família a não sei o quê, já que em casa sempre faltava de tudo, só não faltava a paciência da mãe, a voz grossa do pai e a choradeira dos pequenos.
Foi no meio do carvão, com o rosto preto de fuligem, que José conheceu a linda Madalena, a Borralheirinha. José deu esse apelido a ela, depois de ouvir a história da Cinderela, que também estava sempre suja de carvão, por causa do trabalho duro a que era obrigada, pela malvada madrasta e suas duas filhas cruéis.
Madalena não tinha madrasta. Ia para a carvoaria com pai e mãe mesmo. Toda família no mesmo trilho, na mesma cruz. Com a fé que os guiava, a fome que os levava e o patrão que os explorava. Iam todos, triste e adoecidos, pelo ar pesado que maltratava os pulmões, pelas feridas que não cicatrizavam, pelo dinheiro que era pouco e logo logo acabava.
No meio de tanta desdita, havia enfim um desejo, um coração que se enchia de amor por outro coração, também amante. Madalena e José iam vivendo, sem cuidados de futuro. Gostavam-se, olhavam-se, conversavam poucas palavras, sorriam e respiravam o mesmo pó.
Cresceram depressa e cedo casaram, para aproveitar a saúde que ainda tinham, mó de criar alguns filhos e cumprir o “multiplica-vos” da ordem divina.
E é só isso. Foi assim que aconteceu.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Morte

Fico imaginando como ele seria hoje em dia, se a morte não o tivesse levado. Estaria talvez sentado em sua poltrona, fumando seu cigarro e ouvindo Mozart. Acho que Mozart era o seu ponto de contato com o supremo, com o transcendente. Ele era um homem além das situações, acima do óbvio.
Mas ele se foi e a poltrona também já não está naquela sala que não pertence mais a nenhuma pessoa que o conheceu. Só permanece tão vivo assim aqui dentro de mim, o meu pai carismático, controverso, audacioso e bom. E permanece tão vivo, que não acredito na sua morte. Como pode ter morrido, se tanta coisa ainda teria para viver. Ele não viu o neto tocar piano, logo aquele neto por quem ele demonstrava tanto afeto. O neto que ele adivinhou, enquanto todos diziam que seria uma menina. Ele já o sabia, bem antes do nascimento. Era um menino e além de tudo: um menino pianista, compositor, apaixonado e transparente.
A morte é vil e só pode ser coisa do demônio. Ela deixa sempre esse vazio, essa interrogação. Nós falamos coisas absurdas e banais sobre as pessoas que se foram, só para tentar entender. O fato é que morremos e morreremos todos. Só não entendo por que temos que nascer se é para deixar tanta vida por viver.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Altas Horas

Hora morta, hora grande, tantos nomes da meia-noite, quando a noite parece feia. Quando a noite é cheia de temores, noite de gatos em telhados, de goteiras e gatunos sobre os muros.


Pesadelos, arrepios, choros contidos nos travesseiros e o suor espesso banha lençóis. Medo.


Noite chuvosa, dolorosa, amarga. Mortes súbitas, abandonos, desespero.


Noite lenta, relógios em tic-tac-tic-tac. O resto só silêncio pelo dia que se espera.


É a noite toda, é toda noite esse tormento, pela paixão que me torra o peito. As noites sem o objeto da minha paixão se repetem, desde tempos remotos, desde a primeira noite.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Axilas ao vento



Já que a história se repete, o carnaval continua bombando no Rio, os blocos cada vez mais animados e patrocinados, só me resta republicar meu manifesto do ano passado.

É isso que me encanta. Essa alegria, essa gente bonita, de bem com a vida. Só alegria e esperança de um amanhã próspero e sereno...
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHH! Alô alô, Nave Mãe! Resgate-me com urgência.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Maria Passarinho

Era um dia uma menina...


A menina, brincando no quintal, descobre que pode voar. E voa mesmo! Sem avião, sem medo, sem asas. Voa sozinha, com o desejo de chegar aos lugares distantes e descobrir os segredos que os adultos não contam.

Era então uma vez uma menina que voa de verdade, do jeito que muita gente sonha fazer. Essa é a história.

E lá vai a Maria Passarinho...

sábado, 6 de novembro de 2010

Ladrão

Quando eu era criança, tinha muito medo de ladrão.

Ladrão era um homem de máscara, calçado apenas com meias, andando pelos telhados para invadir nossas casas e roubar nossas coisas. Ladrões roubavam por gosto, por vocação, por temperamento. Eu acreditava que existiam ladrões andando pelos telhados, como gatos. Gatunos.Nossa casa, que durante o dia era tão populosa e festiva, à noite se trancava toda. Havia muitos trincos nas portas que, durante o dia eram abertas e francas.Hoje, lendo no jornal sobre um assalto – coisa mais do que comum – e vendo o rosto dos ladrões, minha primeira reação foi a de raiva. Sinto muita raiva de ladrão. Não daqueles ladrões, especificamente, aqueles três garotos de vinte e poucos anos, mas de uma entidade que rouba. Rouba o que é nosso, rouba o que conquistamos, rouba o que amamos.
Fiquei olhando para os ladrões do jornal. Foram presos três, menos o que fugiu com o dinheiro do roubo. Foram-se. Menos três ladrões na rua. Foram para onde? Quando vão voltar? Mas o ladrão sem rosto da minha infância não me deixa pensar nos três presos, nem no quarto com o dinheiro. Só consigo pensar no meu quarto da infância, onde o medo do ladrão tantas vezes me acompanhou em noites insones.Para onde foi o ladrão dos telhados, que me roubou tantas coisas que eu amava, sem nunca ter invadido de verdade, apenas pela sua ameaça silenciosa? A minha primeira escola, tão limpa e tranquila, levada numa noite de verão; a minha babá, levada numa noite de incêndio; meu primeiro namorado, levado pelo desejo de ser mulher. Para onde foi o ladrão? Quem o guarda até hoje? Talvez ele pudesse me devolver os projetos e os desejos. Talvez ele viesse me libertar. Talvez eu tenha sido presa enquanto ele a todos vive enganando, livre e mal.

domingo, 24 de outubro de 2010

Para o resto da vida?

- Minha filha, você deve pensar bem antes de se casar com esse rapaz. Pensa bem se você quer mesmo se unir a ele pelo resto da sua vida, porque depois vêm os filhos e então não se pode mais escolher muita coisa. Para uma mulher, a vida não dá muitas chances.

Ela continuou a falar, falar, falar...

- Filha! Está longe. Não me ouviu esse tempo todo? Acho que eu estou aqui fazendo papel de boba. Você nem liga para os meus conselhos.

A filha realmente estava longe. Ela havia parado na expressão “para o resto da sua vida”. Estava chocada. Nunca havia pensado nisso. Nunca imaginara o casamento como o início do resto da vida. Resto era o que sobrava, o que não prestava muito, o que ia para o lixo. Restos às vezes iam para o cachorro, no tempo em que eles comiam restos e não rações importadas. Resto da vida era a sobra de vida que poderia ser usada para alimentar os cães sarnentos da rua ou os mendigos.

Ela pensava que a vida iria começar justamente depois do casamento com aquele rapaz, que era o seu sonho de felicidade. Podia ser um engano também, mas era o engano dela mesma, sua proposta. A mãe, coitada, dentro de sua visão igualmente equivocada, não conseguiu contribuir em nada com a reflexão da jovem.

Por fim ela se casou e começou o resto todo. Logo depois dos primeiros anos, quando nasceu o primeiro filho, vieram muitas coisas que não estavam no roteiro e com as quais ela não sabia lidar, de jeito nenhum. Parece que ela estava mesmo apenas esperando chegar a parte do resto. O começo idílico da vida a dois era um engano, porque as palavras da mãe sempre se confirmaram em outras circunstâncias. Não poderia ser diferente, agora. No fundo, mesmo aqueles míseros anos de ventura foram sempre ameaçados pela sombra do resto da vida.

Felizmente, ou infelizmente, o marido não quis acreditar na história de para sempre e saiu de casa para viver com outra mulher. Ela imaginou que aquilo seria apenas mais um começo de história fadada a virar resto.

Ela lutou e sobreviveu, sozinha. Não quis mais se arriscar a encontrar alguém que não quisesse viver com ela o resto da vida. Seria muito dolorosa uma nova decepção.

Contaram-me. Eu não conheço essas pessoas.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Manhã

Com a alma cheia de claridade quero abrir bem a boca

para entrar toda a manhã e toda vida pela boca aberta

os olhos não bastam.

Respiro com força por querer, não por precisar

Apenas quero todo o ar respirado

Que já foi também respirado por todo mundo

Gosto então de abrir os braços

Finjo ser andorinha rasgando céu

Veloz, direta!

O vôo de certos pássaros é sem nenhuma dúvida de rumo.

Mas hoje acordei fechada

Os olhos escureceram desde a noite

E não querem romper a luz

A garganta em nó

O ar que entra pelo nariz tem cheiro de cimento

Amanheci canteiro de obras

Eu peso.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

A louca

Que fascínio a existência dos loucos exerceu sempre sobre minha mente! Eu, criança, observadora atenta dos detalhes cruéis da vida, compreendendo metades como se fossem regras imutáveis da dura realidade que me aguardava, no mundo adulto.


Quase não pude ser criança, temendo os loucos, em especial as loucas.

Loucas mulheres, presas em quartos isolados, grades nas janelas, bonecas e pratos sujos espalhados. A louca vestida em longa camisola, no seu sonho de rainha, coroa de falsos brilhantes sobre a cabeleira cheia de nós. Fios emaranhados de todos os dramas da família, representados, enjaulados nela, na louca.

Imaginava havê-las em todas as famílias. Todas muito bem guardadas. Todas se pareciam com Sara.

Sara em sua jaula, em seu quarto no sótão. Tão moça. Por trás do desacerto, uma mulher bonita.

Além dos cuidados básicos, recebia a visita do médico da família, muito dedicado à jovem louca. Trancava-se com ela por uma hora, avaliando e medicando, para deixá-la calma. A família agradecida não questionava. Sara, aquele caso perdido, aquela sombra.

O que se passava no quarto não se poderia chamar de abuso, de violação. Era sedução, desejo, consentimento. O que importava aos outros? Quem se interessava, quem suspeitava o tipo de amor que unia os dois?

Sara apenas sorria. Era uma louca mansa. Estava ali desde que se entendia, porque toda memória de antes do surto lhe foi roubada pelos eletrochoques. Agora era apenas uma criança no quarto, com suas bonecas e seu amante diário, fiel e cuidadoso.

Durou anos. Desapareceu num dia comum, sem alarde. Desocupou o quarto.


domingo, 26 de setembro de 2010

Rumo

Eu sozinha pela rua quase deserta
É domingo de chuva fina
E eu sozinha
A mãe apanha a filha, numa festa
As moças voltam do cinema
O casal caminha apressado
E eu sozinha pela rua
Sem saber se atravesso
Sem saber se amo João
Ou se amo Madalena
Sem saber se espero ou corro
Nada do que eu faça me ampara nem me ancora
Nada do que eu pense transforma o caminho
Por onde eu sigo, sozinha
Lá em casa ninguém me espera
Mas eu me apresso mesmo assim
Quem sabe nesse meio tempo ele chegou, ou ela
Ou chegaram todos os que eu não espero
Quem sabe fizeram uma festa e se inquietam pela minha demora
Mas o mar, a lua, um banco de praça
Era sentar e me deixar estar
Sozinha

Os passos me guiam no caminho correto
E abro a porta habitual
Sozinha na minha sala, no quarto, na cozinha

Domingo à noite, com chuva

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Eu sei que ele virá.


Virá libertar os loucos e mostrar que as razões dos sãos são apenas tão loucas quanto às deles, às nossas.

Sou louca, mas tenho fé na vinda do anjo da libertação. Por isso permaneço nesta janela, neste quarto isolado, nesta vida solitária. Nada mais me interessa, a não ser esperar que ele venha em sua nave de luz e me liberte deste estado de ser, destas grades, desta vida. Ele virá.

Quando ele vier, toda minha loucura parecerá apenas o meu jeito de ser, assim como a dos outros parecerá o jeito de ser de cada um. Nada além disso. O nosso jeito incoerente será perfeitamente adequado ao novo mundo, que o Anjo virá implantar. Por isso espero, quieta e contemplativa, no canto do quarto. Sem pressa, sem medo. Ele vira e me libertará.

Seremos muitos, mas seremos bons e generosos com vocês que nos humilham, porque sabermos que não foi por mal que vocês nos excluíram das suas brincadeiras, das suas glórias, dos seus festejos. Vocês sempre foram muitos e ganharam o direito de dominar o modo do mundo. Isso é justo, porém vocês deixaram de considerar os que discordam, os que amam diferente, os que falam outras línguas, os que sonham outros sonhos. Vocês esqueceram até que já foram como nós; talvez tenham sido até mais loucos.

No dia em que ele vier, nós sairemos de nossos esconderijos e cantaremos pelas ruas, abraçaremos as árvores sem medo, nadaremos despidos, seremos despudorados e seremos amantes. Todos nós seremos amantes de todos nós, porque o amor que há em nós não cabe em nós e se multiplica à medida que começa a ser liberado.

Nós seremos. Apenas isso. Seremos o que viemos para ser. E vocês talvez queiram ser como nós e não conseguirão. Pobres de vocês, iludidos com a grandeza de sua sabedoria. Implorarão por um pouco de loucura, mas, mesmo a nossa generosidade complacente não poderá fazer nada por vocês. Apenas deixaremos que vocês fiquem com suas vidas previsíveis e morram suas mortes assustadas, para encontrar de novo o caminho da loucura e do regozijo. Renascidos, serão como nós: loucos de pedra, loucos de flores, de céu, de lua, de beijos e carícias, de amores grandiosos e plenos da existência de Deus.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Desassossego

As coisas que eu não sei me deixam aflita. Corre o tempo feito louco, no desvario dos segundos implacáveis e eu não poderei a tudo desvendar. Pior! As coisas que nem ao menos suponho e nunca saberei. E outras ainda que se desvendarão no último momento e eu não terei chance de desfrutar, aprofundar, amar.

As pessoas que não conheço e as que nem sequer existem ainda. Quantas sabedorias!

Os livros que não li, os que não foram escritos, os que já desapareceram.

As músicas que nunca ouvi, as tardes que já anoiteceram.

Quisera eu poder ser tão grande e presente no tempo infinito! Mas não adianta. Enquanto tudo acontece, eu permaneço neste quarto, atada à minha estupidez.

domingo, 12 de setembro de 2010

Ruas

No meio do caminho havia um mendigo esparramado, entregue aos efeitos da exaustão alcoólica. Ou seria outra coisa? Era um mendigo. Era um homem. No meio do caminho havia um homem caído, calças sujas, pés descalços, calos e feridas. Um homem caído de bêbado, ocupando toda a calçada. Ao lado uma quentinha cheia de arroz com feijão. Comida desprezada pelo homem que não merecia nem um olhar dos que por ali passavam.


O homem caído devia se chamar João, José, Bento ou Bernardo, mas ninguém chamou por ele. Ninguém chamou uma ambulância. Era um mendigo. No meio do caminho ficou esparramado o mendigo e as pessoas, alheias a ele, passavam irritadas porque ele ocupava a calçada com sua sujeira, seu sono, sua calça rasgada por onde o seu membro escapava. O membro do mendigo esparramado na rua e que não era ninguém. Um membro que não importava a ninguém, nem a Rosa, nem a Joana, nem a Maria. Inútil membro, inútil alimento, inútil a vida do mendigo, jogado no meio da calçada, ocupando um espaço de outros que não se ocuparam nem ao menos em levar em conta o homem por trás do farrapo esparramado.

Se fosse meu pai, se fosse seu pai, se fosse um filho? Mas não. O mendigo não é nada. O mendigo é apenas um corpo pelo qual passam as pessoas sem reparar. Só reparam o transtorno de sua calçada ocupada, o espaço que ele reivindica –como direito de cidadão que um dia foi –e o feijão espalhado da quentinha ao lado. O mendigo não é quase ninguém.

No meio da calçada havia um ninguém, que foi pai e filho, que amou Maria, Rosa e Joana, que nasceu e foi criança, menino, moço, hoje é velho, sem nada. E ninguém sequer parou para reparar que o mendigo não respirava mais. Ficou ali morto por toda a tarde. Ninguém viu quem o levou, nem para onde.

domingo, 5 de setembro de 2010

Saudades


Para Cora Coralina

Preciso partir deste lugar. Minha vida não cabe neste ambiente tão sofisticado e cheio de tecnologias.

Quero uma casa como a de Cora, pregada sobre um rio, com grandes janelas e extensas sombras ao cair da tarde. Aqui não há sombras. Só o sol inclemente e os uivos incessantes dos freios e das sirenes.

Quero um quintal com a terra exposta, quero regar as plantas do jardim e pisar na relva fresca. Preciso cozinhar olhando pela janela, um cão deitado na soleira da porta, aguardando os restos do almoço desfrutado longamente.

Quero o som do vento em árvores e não o zumbido frio das frestas de alumínio. O choro dos ciprestes.

Minha alma já não pode aqui viver e minha garganta está travada. Preciso partir. A casa velha me aguarda. Voltarei ao lugar de onde nunca deveria ter saído, muito embora não esteja certa de alguma vez lá ter estado. Não duvido de que lá estejam os meus amores, que tanta falta me fazem. Os meus anseios só podem ser atendidos pelos afetos que deixei na velha casa. Lá serei vizinha de Cora e lá farei de minha vida uma verdade que ainda é promessa.

Preciso ir. Nada mais me prende aqui.

sábado, 22 de maio de 2010

Vai um picolé?

A minha infância teve um sabor autêntico. Éramos aquelas criaturas impetuosas, despreocupadas e descalças. Éramos o que os adultos chamavam de “as crianças”.


Pique-esconde, que a gente chamava de pique-um-dois-três e o imenso prazer em salvar todos. Amarelinha bem desenhada e jogada com casca de banana, melhor que pedrinha, porque não rolava. Mãe-da-rua, sem perigo, de um meio-fio ao outro. Nossa! Quantos hífens havia nas nossas brincadeiras! Acho que, se eu estivesse escrevendo sobre brincadeiras atuais não poderia usar todos eles, por causa das novas regras na língua. Em compensação, se fosse falar das brincadeiras de hoje, usaria muitos “wyk”, essas letras que até outro dia não faziam parte do nosso alfabeto. Eram vinte e três letras para vinte e três mil horas de rua, de rostos suados, de gritos e tombos espetaculares.

Bicicleta e carrinho de rolimã, no meio da rua, sem cinto de segurança. Muitos esparadrapos por cima do mercúrio cromo. Hoje está proibido, dá alergia. Aliás, meu filho teve uma tremenda alergia a mercúrio cromo! Coitado. Mas naquele tempo todo da minha infância não tive nenhuma notícia de algo parecido. Vai ver que muitos morreram e a gente nem soube. Acharam que foi impaludismo(hoje não se morre mais de impaludismo), caxumba, quando na verdade foi alergia ao remédio do joelho ralado. Quem sabe? Considerando que a gente andava em pé nos bancos de trás dos automóveis, sem cadeirinhas nem cintos, tudo é possível. Aliás, no caso da minha família, seria uma aventura arranjar uma carro onde se pudesse acomodar tantas crianças em cadeirinhas super sofisticadas como as de hoje.
E lá vamos nós, para o sítio do vovô! Todos na Vemaguete!
Conta a lenda que uma vez uma irmã mais nova da minha mãe caiu do carro, na volta do sítio. Era possível de acontecer. Mas o vovô ia tão devagar que a criança deve ter chegado em casa antes da família toda, correndo por fora do carro.
O sítio em questão era em Jacarepaguá. Vejam bem! Tudo isso é do tempo em que Jacarepaguá era roça. Com a vaca Douradinha, a fila para abrir o coco e a cana cortada na hora pra chupar e assoviar. Como o vovô teve muitos filhos, todos com a mesma vovó, nós, sobrinhos, fomos quase crianças junto com os tios mais novos. Daí as memórias contemporâneas.

O sorvete Kibon vinha embrulhado no papel enrolado, sem lacre. Pura fruta ou chicabon! Lembro do de manga, que só faziam no verão, que era quando as mangas existiam. Hoje temos manga o ano inteiro, apesar de não terem nenhum perfume e quase nenhum gosto. Lá em casa elas perfumavam toda a cozinha, vindas da casa da vovó. Eram as carlotinhas, as espadas (cheias de fiapos), uma ou outra manga-rosa(mais um hífem). Deliciosas. Hoje elas têm uns nomes mais esquisitos.

E as pausas das brincadeiras eram para se tomar um copo d’água e comer uma banana.

Colégio era de março a junho e pausava um mês. Depois vinha o segundo semestre, de agosto a novembro. Tínhamos férias e íamos à praia, à rua, à casa dos amigos. Tínhamos a família jantando na mesa da sala, e tínhamos sono cedo, porque a noite era mais coisa de adultos. Ficar acordado até meia noite era no Natal e no Ano Novo. Os dias eram mais interessantes para nós.

A televisão era nos dias de chuva, na hora de ver os desenhos animados. Perda de tempo, ficar parado na frente daquela coisa em preto e branco, com pessoas falando.

Realmente não sei como eu viveria a infância de hoje. Com certeza a um a hora dessas eu estaria no play, brincando com minha Hello Kitti (aquela gata horrorosa, cabeçuda-sem-boca) e falando de namorado, dançando que nem aquela cantora esquisita, tirando milhares de fotos de coisa nenhuma, para colocar no meu Orkut.
Obs: esse aí da foto era o Rosinha, nosso fiel fornecedor de picolés do Humaitá. Ele passava todos os dias também na porta do Colégio São Patrício e a gente comprava pelo portão. Imaginem isso!

terça-feira, 18 de maio de 2010

Sinal Fechado

Andando depressa, de um a outro compromisso, encontro, almoço, horários apertados. As ruas cheias a essa hora, hora de andar de um lado ao outro, de um a outro compromisso. Todos também andando depressa. Seus caminhos se cruzam, nossos caminhos incompatíveis de impossibilidades físicas, de dois corpos não ocuparem o mesmo milímetro da calçada. Ônibus, barulhos, buzinas e tudo óbvio.
Assalta-me uma impaciência desconhecida. Quero andar depressa e fugir. Chegar logo e na verdade não chegar. Sumir no caminho sem notícias. Onde você estava? Eu? Por aí... fugindo da obrigação, da escola, das professoras, dos alunos. Fugir dos horários apertados, dos atrasos, dos prazos. Fugir das pessoas que me cobram, das que me esquecem, das que ligam, das que furam, das que me querem e das que desprezam meus quereres.
Fugir dos que me mandam passar, dos que pedem que eu pare, dos sinais fechados, dos taxis velhos, das caronas chatas, dos elevadores silenciosos, das conversas inconvenientes, de pessoas que não conheço e me olham, dos conhecidos que me olham e me estranham, que meu cabelo isso, que engordei ou emagreci.
Fugir das vitrines de roupas minúsculas, de sapatos altos que doem ao andar, dos panfletos, dos pedintes, dos mendigos jogados às traças, dos camelôs vendendo coisas feias, das pessoas feias comprando coisas baratas, das lojas de biscoitos e das Casa & Vídeo, das filas em lotéricas, de sonhos inúteis.
Correr dos funcionários com crachás correndo para o almoço, falando de chefes e colegas, de trapaças e de chatices, de estudar para concursos e de seguranças nos empregos.
Correr das cobranças de postura, de coerência e prudência, de boas maneiras e de conter impulsos, de engolir o choro e chorar os mortos que nem são meus.
E correndo eu ia da Voluntários à Paria de Botafogo. Calçadas sujas, cachorros que as usaram para banheiro e donos estúpidos que os deixaram por lá. Pessoas com cigarros, andando devagar, com os braços muito abertos e eu não conseguindo passar, e tenta por um lado, pelo outro e não vejo e de repente tudo permanecerá por um longo tempo parado. Um buraco, um bueiro quebrado, um pé torcido, imobilizado, tem que ficar com ele para cima, por causa da circulação. Remédios para dor, repouso, arranhões e adeus a toda a pressa.
Finalmente fugi, ainda que não exatamente para onde desejava.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Cabe na Bolsa

Bom ter amigas tão antenadas, que me mandam mensagens interessantes e me despertam a vontade de escrever e contar casos.


Hoje recebi uma que falava de “bolsa de mulher”. Este assunto já estava há algum tempo me martelando os miolos. Para falar a verdade, desde que adquiri uma dor crônica no ombro, que irradia para o pescoço e se transforma em dor de cabeça, por causa delas, as bolsas. Coisas da idade madura. Nós amadurecemos e melhoramos muito, mas nossos corpos são teimosos e criam casos por qualquer besteira.

Comecei a questionar as bolsas. Resolvi aboli-las, não consegui. Era muito radical. Tentei diminuir o tamanho. Sim! A solução. Bolsas menores seriam mais leves. Comprei uma para experimentar e me vi levando uma coisa insuficiente, abarrotada, onde eu não conseguia achar nada sem tirar tudo de dentro. E ainda por cima tive que carregar outra sacola com uma porção de coisas que não cabiam na principal. Mais peso para os ombros. Então desisti do projeto e ainda descobri outras verdadeiras intenções e necessidades das minhas bolsas grandonas.

Por exemplo: uma reunião chatíssima, de professoras (e às vezes algum professor, que a maioria esmagadora é de mulheres mesmo). Tem aquela hora em que vai dando um desespero, por conta das reclamações de sempre (“essas crianças não têm limite”, “a família não dá educação em casa e sou eu que tenho que dar?”, e rátata tá tatá...). Ah! Nessas horas como é tranqüilizador mergulhar no universo singular e múltiplo da minha querida bolsa. Vou tirando as coisas, uma por uma, analisando, separando o lixo, vejo as fotos, os comprovantezinhos de compras( é interessante tentar lembrar o que foi aquela compra naquela loja. O nome que aparece no boletinho geralmente não é o nome da loja e a gente tem que fazer um esforço danado para lembrar onde comprou uma coisa de 159 reais em três vezes). E a reunião está lá, sem resolver nada, enquanto eu resolvi que preciso gastar menos. Agora, já pensou se eu não tivesse uma bolsa para mexer? Estaria comendo biscoitos, com certeza. Primeira constatação a favor das bolsas cheias de porcarias: elas emagrecem ou, pelo menos, não deixam a gente engordar muito.



Eu até pensei em encontrar outras vantagens das bolsas, sem ao menos mencionar a simples vontade de comprá-las, só por vaidade mesmo.

Mas voltando à mensagem original, o email da amiga. O texto percorria todo o caminho da vida de uma mulher e descrevia suas bolsas a partir da mais tenra infância. Bem, a primeira bolsa descrita, a bolsa de bebê, cor de rosa, cheia de fraldas etc. (não consigo descrever isso, pois não tenho mais conhecimento) não pertence à criança e sim à mãe. Então não conta. Mas a segunda é uma bolsa de “Barbie” (eca!), cor de rosa, cheia de enfeites para cabelos, celulares, batons etc., de uma menina de cinco anos. Fiquei chocada. É isso mesmo. As meninas de cinco anos, urbanas e atuais, carregam bolsinhas, ai que gracinha! Coitadinhas. Deviam carregar brinquedos, correr pelas pracinhas, subir nas árvores e fazer comidinhas de lama. Mas não. Carregam bolsinhas, dançam dancinhas sensuais e usam batom e sombra nos “olhinhos”, que fofinhas...mais uma vez coitadinhas.

Eu não sou exemplo para ninguém, lógico, mas com cinco anos eu andava livre, braços agitados ao ritmo das minhas andanças e corridas desabaladas. Nada de bolsa. Minha primeira bolsa foi aos treze ou quatorze e servia para chaves de casa, dinheiro e absorventes. Disso não se escapa. Era uma coisa apenas funcional, a tiracolo, bem anos setenta. E eu ainda andava livre, percorria três festas numa noite, passava tardes na casa de amigas de papos e trabalhos de escola. A bolsa era o de menos. Não cheirava nem fedia.

Eu era livre e não sabia. E tenho aqui uma dúvida: a bolsa se tornou indispensável na minha vida para carregar tantas coisas ou passei a carregar tantas coisas apenas para dar utilidade às bolsas?

E ainda outra dúvida: existem até muitos homens que usam bolsas ou mochilas, mas a maioria não leva nada mesmo. Como eles fazem?

quarta-feira, 3 de março de 2010

Um homem pra chamar de seu

Dia desses eu escrevi alguma coisa comentando sobre o livro “Por que os Homens Amam as Mulheres Poderosas?”. Hoje estava pensando sobre os homens que as mulheres amam.
As mulheres, assim no geral, fica meio complicado. Mas posso falar por mim. No máximo poderia ampliar minhas reflexões às sete ou oito amigas e confidentes.
Por que isso de novo?
Estava andando pela calçada aqui do meu aprazível bairro, quando passa por mim, acelerando o passo para me ultrapassar, um ser do sexo masculino que já tentou de várias maneiras “chegar em mim”, como diriam por aí. Primeiro então a pequena história, depois o fato recente.
Vou contar depressa. Esse cara puxou papo comigo na rua como se fosse um velho conhecido e eu fiquei sem jeito porque achei que estava deixando de me lembrar de alguém que era muito obviamente conhecido e ele me pediu logo o meu telefone novo porque não sabia que eu morava aqui na Urca etc e tal e eu dei o meu telefone só depois ele perguntou o meu nome e eu fiquei com aquela cara de tacho de goiabada que agarrou nas beiradas. Depois disso ele me ofereceu carona numa manhã cedíssimo quando eu esperava o miserável do ônibus que nunca passa na hora e no que eu descia do carro ele me agarrou e só não me tascou um beijo de língua devido à minha reação rápida e decidida. Mas fui fina e ficou tudo bem. Desde então esse homem me olha com cara de criança faminta e eu finjo que esqueci até de ter um dia olhado pra ele. Mas agora também eu sou praticamente outra pessoa e tenho o direito de não conhecer malas antigas.
Isto posto, hoje de manhã eu caminhava pela calçada e esse insistente ser passou por mim e gemeu. Sim. Gemeu. Quase no meu ouvido, como se fosse um lamento, algo como: “ah, se você me desse bola!” Olha só. (Para eu acreditar definitivamente que estou podendo e dispensar a analista está faltando só um entregador com uma dúzia de rosas na minha porta.) Afinal, não é um sujeito de se jogar fora. É advogado, mora bem, tem filho mas não tem esposa...ah!!!! Peguei aí. Segundo a minha teoria, explícita no post “Uma homenagem”... os homens bons são de dois tipos: os casados e os desencarnados. Pode ser que eu me engane.
Mas então. Por que será que ele não me interessa nadinha? Porque é disponível demais. Só isso. Homens atenciosos são uma maravilha. Em determinados momentos tentam adivinhar os nossos desejos, nos elogiam, nos incensam. Mas não sempre.
Uma vez saí com um que era até interessante. Conversamos e até daria para rolar alguma coisa. Mas, exatamente cinco minutos depois de me deixar em casa o pobre me liga dizendo que estava com saudades. Não deu mais nada. Meu coração congelou imediatamente.
Ah, como são maravilhosos os homens raros, os que estão lá, quase ao alcance das nossas mãos, mas que mantém aquele charme da existência meio misteriosa, dos encontros breves, dos telefonemas inesperados e das longas pausas. Esses são os que me encantam, como devem encantar as trufas para os gourmets, as tardes rosadas para os pintores, os silêncios para os compositores, as musas mortas para os poetas.
Vou aguardar os comentários das amigas revoltadas, que certamente me criticarão por revelar um segredo que é só meu, uma falha de caráter. Dirão que todas gostam de homens submissos e disponíveis, ternos e apaixonados. E segue a caravana que os cães continuam latindo.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Sexo Selvagem


O louva-deus é formidável. O sexo entre eles, eu quero dizer.
Pra início de conversa, o macho nunca fica de frente para a fêmea, pois ela o comeria imediatamente. A intenção dele é comê-la (em outro sentido) antes de qualquer coisa. Mas, depois que as coisas esquentam, ela consegue alcançar a cabeça do pobre coitado e a devora.
Isso não é o fim. Enquanto a fêmea saboreia o cérebro do futuro pai de seus filhos, ele, o macho decapitado, continua penetrando e ejaculando, até que não sobre uma única gota de esperma. E ela deixa. Ela continua devorando a cabeça e se aproveitando dos prazeres que o pênis dele proporciona. Duplamente esperta.
Quando tudo termina, ele se retira. Veja bem: se retira! Quer dizer que ainda está vivo. Que loucura!
O segredo do bichinho é que tem uma espécie de cérebro espalhado por todo o corpo, inclusive no pênis, o que o transforma em um ser do sexo masculino que realmente pensa com a genitália. Por isso continua vivo depois de perder a cabeça.
Bom, o que eu quero dizer com isso? Absolutamente nada. Os leitores devem tirar suas próprias conclusões, que serão sempre muito mais pertinentes do que as minhas sugestões. É só o resultado de uma tarde de domingo à frente da televisão assistindo ao muito instrutivo Natgeo, o canal que melhor se presta ao tédio tranqüilo, quando nada se quer, além de uma voz mansa narrando algo sem muita importância, com imagens de animais e belas paisagens.
Interessante como a vida pode ter bons momentos. Geralmente acontecem quando não estamos esperando nada mesmo. Assim, o que está acontecendo é bom e pronto. Tarde de domingo é em casa, no ar condicionado assistindo programas de vida selvagem. Ponto final.
Chato foi descobrir que o urso polar faz um sexo tão violento que seu pênis, que possui um osso por dentro (já vem com prótese implantada de nascença) pode se quebrar durante o ato. E precisa ser assim, pois a fêmea só ovula durante a penetração, mais especificamente a partir da pressão do órgão masculino dentro de seu canal vaginal.
Meu Deus! E eu pensando que as coisas fossem complicadas só comigo. Mas sigamos em frente. No próximo bloco vamos entender porque todas as hienas têm pênis; até as fêmeas. Que mulheres poderosas!

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Esse ano não vai ser igual


Resisti muito. Odiei carnaval durante toda a minha vida. Houve uma trégua quando aqui no Rio a festa de Momo estava reduzida aos desfiles das escolas e a Zona Sul era um deserto, pois todos viajavam. Ia-se ao cinema, andava-se por aí e até as praias eram tranqüilas, pois o pessoal se concentrava perto do Sambódromo.
Hoje há blocos por toda cidade e gente que sempre ia pra fora está ficando por aqui.
Ontem, sábado de carnaval, ainda no meu estado habitual de mau-humorada crônica, combinei com umas amigas um encontro no Shopping da Gávea à tarde. Saí de casa já um pouco preparada para enfrentar um certo congestionamento, mas nunca imaginando o que de fato havia nas ruas.
Os blocos em si eu não vi. Mas pessoas! Muitas pessoas fantasiadas, com perucas coloridas, faces coradas, meninas e rapazes com aquela animação contagiante do carioca. Turistas embevecidos, mulheres mais velhas, idosos, homens, crianças, bebês...
Eu estava num ônibus e o trajeto longo e lento operou um milagre no meu estado de espírito. No fone de ouvido tocava Diana Krall e lá fora parecia um filme, acho que até estava tudo em câmara lenta, sabe como é? O bom dos tocadores de MP3 é que a vida com trilha sonora é muito mais agradável. Fecha parêntese.
Os foliões eram como aqueles confetes e serpentinas que se espalham ao redor do salão. Por todos os lados havia gente fantasiada e eu besta e completamente rendida. Entrei no shopping, onde muitas pessoas passeavam com suas fantasias, sentei num restaurante e fiquei pensando em sair para voltar para a rua. A coisa é realmente inexplicável. O carnaval de rua ganhou o meu coração para sempre.
Na saída comprei umas anteninhas e coloquei na cabeça. Voltei para casa assim e me senti integradíssima ao movimento. É certo que não entrei em nenhum bloco, mesmo porque não havia mais nenhum. Mas daqui pra frente, mesmo não sambando no meio da massa, olharei o carnaval com outros olhos. A visão melhora muito quando se olha com mais flexibilidade.
Créditos de imagem: "Carnaval de Rua" - Militão dos Santos

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

É pecado


Já ouvi dizer que para um casamento dar certo tem que ter quartos separados. Outros falam em camas separadas no mesmo quarto. Nelson Rodrigues falou em banheiros separados. Uns pregam a individualidade, existem aqueles que acham melhor viver o tempo todo em contato. Mas vamos lá, que obviamente eu pretendo defender alguma teoria. Uma teoria que não vai afetar a vida de ninguém, mas eu preciso. E não foi desenvolvida propriamente por mim. Vou contar.
Conheci uma linda senhora, uma verdadeira dama de oitenta anos. Nada parecida com uma doce velhinha ou uma vovozinha tricoteira. Nem tampouco dessas senhoras animadas que passam a noite em bingos clandestinos ou festas dançantes para terceira idade. Essa senhora é outro estilo; dona do mundo. Viaja para todo canto, desde que ficou viúva, há mais ou menos quatro anos. Segundo ela, a solução definitiva para um relacionamento feliz é radical: casas separadas e ele tendo, em sua própria casa, a sua própria esposa. Aí sim, podemos começar a ser felizes para sempre, até que a morte nos separe.
E desenvolve a teoria, de forma incontestável. A esposa fica com a sociedade, as heranças, as viagens com a família, Natal, aniversário da sogra. Leva de quebra as camisas sociais bem passadas, a cozinheira, as contas, a criadagem, as reuniões na escola, os cunhados e cunhadas, a insônia, a cara amassada no café, o mau humor e outros males mais prosaicos e menos confessáveis.
A partir daí, confesso que comecei a gostar muito da idéia e já me animei a praticar a milenar, abominável e terrivelmente pecaminosa arte do adultério assumido.
Eu, a amante, no caso, fico com encontros alegres, algumas flores, passeios em momentos inesperados, sexo em plena tarde, viagens “a trabalho”, reuniões que acabam tarde. Interessante? Bem, já que é uma tese defendida por uma pessoa tão encantadora, só me resta divulgar. Sei que vou ferir algumas suscetibilidades, mas é exatamente esse o meu maior prazer, no momento. Daqui para frente quem sabe terei outro?
Na teoria parece divertido, mas na prática tudo é mais complicado. Pena.

domingo, 31 de janeiro de 2010

Preciso melhorar o projeto

Tem alguma coisa errada e eu preciso falar logo, pra ver se alguém concorda comigo.
Está mal bolado o negócio da vida. As coisas demoram a dar certo, vêm uns gurus e ensinam que a gente tem que mentalizar, pensar positivo, que o Universo responde. Na hora faz o maior sentido. Eu juro que me empenhei ao máximo, fiz sorrisos ao léu, joguei dinheiro pela janela, gastei à vontade porque o tal do universo quer o fluxo, quer que a gente solte, que assim até o corpo funciona melhor, sem medo etcétera e tal e blá.
Que Deus olha por nós, está ao nosso lado, que se a gente rezar ele ajuda, de hora em hora e melhora.
Diz o outro que é impossível ser feliz sozinho e que sozinho não fica bem. E que dinheiro não traz felicidade, o importante é a caridade.
Então eu mergulhei no estudo do Espiritismo, no esoterismo, na meditação de vários tipos, mentalizando um futuro próspero, um amor tranqüilo e são. Planejei viagens, plasmei saúde, agradeci ao Deus vigilante pelo emprego, embora mal remunerado, que me favorece o amadurecimento espiritual.
Tudo lindo, muito cristão, muito quase sublime. E de repente...
Meu mundo cai aos pedaços, numa falta de paciência que só vendo. Dá vontade de gritar, de correr por aí, assumindo uma loucura que viveu anos presa aqui dentro, ameaçando me dominar de uma vez por todas.
Não seria melhor assumir logo que o negócio está todo fora da ordem? Que Deus não olha por ninguém? Deus não é um cara que fica olhando e se divertindo em distribuir bênçãos a uns, castigos a outros, de acordo com algum tipo de humor sórdido ou pelos nossos apelos contritos. Penso que para mim não olha mesmo, nem Ele, nem os ajudantes.
Parece que erraram no projeto, ou erramos, no caso de eu ter me envolvido realmente nisso antes de nascer, como provam os estudos Espíritas.
Reparo que as coisas não dão mesmo certo. O amor, por exemplo. Não devia ser mais fácil? Mais combinado, mais no alvo?
Quantas encrencas estão, neste exato momento, se armando por aí, porque João casou com Maria, que ama Pedro, que ama Luíza, mas se casou com Laura que é amante de Antônio enquanto pensa em João que não está a fim de ninguém, só quer ter uma mulher pra aparecer como sua e essa é a Maria. E tem quem mate por isso, quem morra ou adoeça e quem não durma ou mesmo não coma. Tem quem engorde por causa dos chocolates que aliviam a solidão e depois deixam somente o arrependimento que fazem chorar.
Tinha que ser mais fácil, mais bem bolado, bem combinado.
Na próxima vou bater o martelo. Só venho de novo com tudo certinho, organizado. Se não der para ser, fico por lá, vagando pelo éter, como alma penada. Mas não quero viver outra vida desse jeito. E tenho dito.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Aconteceu em novembro

Depois de um exaustivo dia na escola, numa sala de aula quente e mal aparelhada, cheia de alunos barulhentos e suarentos, coitados, que esse verão já beira o apocalipse, sento-me num ponto de ônibus. Já sei que vou criar raízes ali, porque os ônibus para a Urca são uma espécie de miragem. Também, quem manda morar na Urca?
Senta-se ao meu lado uma menina. Uniforme da Prefeitura do Rio, aquela coisa linda.
Saca da bolsa um celular modernérrimo e chama alguém.
- Alô! Tia! Ó, fiz um Orkut pa tu. É, eu fiz.Olha lá, botei tua foto lá. Tu tá olhado pro lado. Já arrumei um monte de amigo pa tu já. Tem a Ilane, a Cristiane, a Naryane, uma ôta lá. Depois tu olha. Tu já tá cheia de amiga já.
E continua:
- Cadê João Pedro? Ah! Tá. Tô no ponto de ônibus, tô indo pra casa, depois eu vô pa praia. Tchau.
Desliga e liga de novo. Para outra pessoa:
-Vem cá, tu tá onde? Tá de moto? Eu to esperando o ônibus. Não, não quero i com tu não. Eu vô sozinha.
Desligou e começou a ligar outra vez, para outra pessoa. Outra ligação importantíssima da qual todos estávamos sendo convidados a participar.
Bom, meus ouvidos não estavam mais agüentando e, por não desejar virar um penico eu mesma inteira, saí dali. Fui andando para casa.
É isso aí. Eu estou errada. Estou ficando exigente e desadaptada demais. Gostaria de ouvir o Português claro, minimamente bem falado. Não gosto de calor, de churrasco, de funk, de novela, nem de nada. Sou uma chata. Devia ir viver na Noruega.
Opa! Boa idéia.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Nomes Próprios

No princípio era o verbo e nomes para as pessoas. Havia as Saras, as Marias, as Ruths e alguma Ester. Os homens eram Pedros, Paulos, Marcos, Cíceros, Beneditos, Osórios e Otávios.
Um dia, num remoto verão, que é quando sempre nasceram as modas, uma certa Maria teve uma filha. O pai, José, achou por bem que a menina juntasse, através do nome, a força daquelas duas almas que, tão unidas, trabalhavam a árida terra do sertão do Piauí. Assim foi batizada Maria José e a vizinhança adorou a novidade. Na tapera vizinha nasceu José Maria, filho de outro bravo casal, que não entendendo ainda a brincadeira, resolveu usar os nomes dos iniciadores da moda.
Longe dali, por associação de idéias levadas pelo vento, um jovem casal registrou Ivanilda, filha de Ivan e Cacilda. No dia seguinte nascia Leonilton, filho de Leonor com Nilton, que aliás tiveram mais cinco filhos. Criaram Mariltina (Maria era o nome da mãe de Leonor e Niltina seria um final feminino para os derivados de Nilton); Octacilda (Octávio que era o avô paterno e Cacilda a vizinha que fazia a cabeça de Nilton); Marinalva(em homenagem a duas bisavós Maria e Dalva, com um N para dar sonoridade); Gilbernilton (homenageando um tal de Gilberto que apareceu por aquelas terras). Fecharam a produção, pois Cacilda não suportou as agruras da vida no semiárido e fugiu com um boliviano de nome Pancho. Teve filho na Bolívia e batizou-o de Panchildo.
Nilton casou-se novamente, para se livrar da dor de cotovelo. Sua esposa Isadora, foi escolhida por ter um nome promissor, coisa muito apreciada por aquelas bandas. Logo estavam correndo atrás de ratões do mato os pequenos Isanilton, o Dorilton e o Lailton (Laís era irmã de Isadora e provavelmente fazia um por fora com o cunhado).
As gerações foram se sucedendo e a moda de misturar nomes avançou como a desertificação das terras do Nordeste. Mas creiam, todos os Joseniltons, os Dorilivsons, as Erilândias (juro que tive uma aluna com este nome), os Robervais, as Marilcélias, têm alguma coisa que os liga àqueles pioneiros da criatividade brasileira, sempre à frente dos outros países do mundo.

Lembranças um pouco fantasiosas

A cozinha era sempre ativa. O refogado gritava na panela quando recebia o feijão e o aroma de alho subia como nuvens de esperança e conforto.
Em cima da geladeira repousava uma generosa fruteira, coroada de laranjas, bananas e algumas maçãs. As maçãs eram menos abundantes naquele tempo, não sei se em todas as casas, mas na minha. Penso que o preço da perfumada fruta limitava sua quantidade a apenas uma para cada um, envolvidas em seu galante papel de seda azul.
O café da manhã era a alta rotatividade, regido pelos horários variados das escolas e compromissos dos habitantes. Simples: café, leite, pão e manteiga. Pão com crosta crocante e casquinha destacável, pra comer separada com muita manteiga. Depois alguns tiravam o miolo. Eu nunca tirei porque miolo é o coração do pão e nunca entendi esses fricotes.
À noite tinha mais uma refeição completa. A mesa grande da sala toda ocupada e os pratos de sopa por cima dos pratos rasos indicavam a variedade das delícias que seriam apresentadas.
Depois da sopa, o feijão fumegando o arroz branquinho, os legumes, as carnes e as saladas.
Sobremesa em dia de semana era a simplicidade da goiabada com queijo ou simplesmente a água pura com uma banana cortadinha. Meu pai comia a dele com garfo e faca. Um ritual elegante e divertido. Cortava ao meio no sentido do comprimento, abria a fruta em dois e cortava os pedacinhos que iam sumindo em sua boca. Aquilo era bonito de se ver.
No meio da tarde tomava-se café com pão fresquinho da padaria. Sempre que se tinha o privilégio de estar em casa. Essa hora me foi roubada quando entrei pra escola. Passei a sentir a ausência do meu ninho, tomando meu suco de laranja e comendo meu pãozinho murcho, tirados de dentro da merendeira arquetípica, de plástico. A garrafinha ficava com a tampa pra fora. Igualzinha à merendeira de uma boneca que eu tive. Todas as crianças tinham a merendeira igual e quase todas levavam a mesma merenda. Não havia pacotinhos de horrorosos biscoitos de isopor com cheiro de chulé. Havia a lembrança do cuidado de nossas mães, deixado impresso no corte do pão, na generosidade da manteiga e no doce do suco.
Elas ficavam lá longe, esperando a volta dos filhos da escola.
Ela, a mãe, providenciava tudo isso. E se vivia numa casa limpa, varrida e encerada, com plantas nas janelas. As roupas de cama eram trocadas religiosamente uma vez por semana e levadas, em quantidades industriais, por uma lavadeira, uma preta velha autêntica, que saia carregando uma grande trouxa, equilibrada em cima da cabeça. Era o malabarismo mais impressionante que eu presenciava na minha infância. A trouxa da Dona Maria Lavadeira.
Elas sentavam pra fazer o rol e eu me impressionava muito com essa palavra. Quer dizer que existia uma palavra especial pra designar a lista de roupas sujas que a Dona Maria levava. Não ouvia essa palavra em nenhuma outra ocasião e em nenhuma outra família. Mas na minha fazia-se o rol: doze lençóis de solteiro, dois lençóis de casal, oito fronhas, doze toalhas de banho, dez de rosto...e lá ia a Dona Maria lavar tudo isso em seu rio. Rio? Eu imaginava que sim, mas ela morava no morro, na favela, no Dona Marta. Não tinha rio nenhum também não devia ter muita água, nem muito sabão. Mas a roupa vinha lavadinha. E tinha a passadeira, a Dona Alcídia, que ficava quietinha no quarto de empregada, transformando nossas roupas lavadas em panos macios e prontos pra batalha. Muitas roupas.
Às sextas era dia de encerar o chão. Todo o chão. A casa ficava com um cheirinho mágico de limpeza e os nosso pés ganhavam um respeito temporário por aqueles tacos tão bem arranjadinhos, formando desenhos regulares. Mais cuidados, mais carinho, mais o amor de nossos pais, transformado em suporte para nossas vidas. Em tudo era o que se via. A nossa casa causava inveja nos vizinhos e nós não sabíamos de nada. Somente nos entregávamos à tarefa de existir nela e sujá-la, comê-la, dormi-la.
Tempos se foram, foram-se os pais e eu me sinto muito incapaz, com meu pequeno apartamento e apenas um filho. Talvez seja o silêncio, a solidão, a calmaria.