sexta-feira, 6 de abril de 2012


Ana Maria é tão feliz!
Que vida perfeita tem Ana Maria. Eu a vejo todo dia, descendo a rua para comprar umas “coisinhas” no mercado. Engraçado, como faz diferença comprar “umas coisinhas” ou fazer compras no mercado. Fazer compras parece que custa o suor do rosto, as sacolas pesam nos braços e nelas há mais necessidades do que prazeres.
As sacolas da Ana Maria só devem trazer coisas gostosas e crocantes. Nas minhas eu trago sabão pastoso, água sanitária e um quilo de feijão preto. Mas feijão preto é muito bom, eu garanto. É delicioso com arroz branco e alface. Palavra de honra que eu gosto. Me faz lembrar do dia em que eu tive que almoçar no colégio. O primeiro almoço fora de casa, sem mãe nem pai, sob o olhar severo das freiras do São Marcelo. Elas eram boazinhas comigo. Pena terem me expulsado da escola, pois eu era irmã de meninas malcomportadas. Eu era o mal comportamento em potência. Inútil tentar me manter numa instituição tão digna. Minha irmã beijava a boca do namorado e se recusava a reconhecer-se em pecado. Eu nem tinha boca ainda. Era só uma criança tímida e confusa.
Mas então, o arroz com feijão e a alface que elas me serviram era até bom. Muito bom mesmo. Tinha também um bife, que eu tive que lutar para cortar em pedaços, coisa que nunca havia tentado antes. Viu, como a escola ensina?
Até hoje, quando como alface junto com arroz e feijão preto, tem que ser o preto, sinto o gosto daquele sábado de horário integral no São Marcelo. Não me lembro de nada além do almoço. Aquele silêncio, as freiras servindo a comida, as meninas comendo até não sobrar nada dos pratos. O motivo do evento era uma preparação para a Primeira Comunhão, que é quando as crianças são devidamente preparadas para poderem receber o Corpo de Cristo. Devo ter aprendido naquele dia o que era o inferno, quem era o demônio, como fazer para não pecar, como me penitenciar dos pecados cometidos, como viver uma vida livre de tentações. Puxa! Que dia instrutivo. Tanto que não me lembro de nada do que me ensinaram. Só esse inferno constante, esses demônios vigilantes e cruéis, que me espiam atrás da porta. Acho que o céu deve ser no máximo o arroz com feijão e alface. A parte do bife são as lutas para se chegar lá.
Ah! Mas a Ana Maria! Era dela que eu queria falar. São os tais demônios que me perturbam o raciocínio e me fazem mudar de assunto.
Ana Maria tem marido, mora numa casa linda! Já reparei que agora o bom é usar muito essa palavra: “lindo!”. Assim, com exclamação. Pode ser “linda!” também. Ou lindos!, lindas!, lindíssimos!!!. Aceitamos variações. Só não aceitamos o feio, o trágico, o mal, o doente. Todos têm que ser felizes, como nas margarinas e nos bancos. Eu quero dizer nos anúncios, mas acho que ninguém mais repara que um anúncio é apenas propaganda para vender alguma coisa. Acho que a gente acaba acreditando e querendo viver a vida como a Ana Maria, descendo a rua para comprar umas coisinhas, para preparar um jantarzinho romântico, assistir um filminho no sofá e depois fazer um sexozinho gostoso com o marido, fiel e previsível, que chega do trabalho. Bom, a Ana Maria também trabalha, mas ela AMA o que faz. Seu trabalho é super estimulante e ela está super bem, ganhando um salário muito bom.
Como eu fugi do assunto. Essa Ana Maria não me deixa pensar direito. Deve ser inveja. Eu queria ser como ela, mas não consegui ainda entender em que planeta ela vive. O fim da rua dela é do outro lado do meu.
Qualquer dia eu descubro.

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