quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

A Velha Senhora


Acontecem coisas na vida. Coisas imprevisíveis, às vezes tanto que parecem excesso de criatividade. É relatar o fato e ouvir comentários desairosos sobre nosso juízo. Mas o que vou contar aconteceu mesmo. Juro. E foi hoje.
Eu voltava do trabalho e foi um dia bom, produtivo, com histórias causando emoções e crianças chorando no final. Posso até contar outra hora, como um grupo de meninos e meninas de nove ou dez anos ouviu, cheios de encantamento, a história da Pequena Vendedora de Fósforos. Tristeza das tristezas, pérola de Andersen, bem adequada para esse tempo de muitas festas e comemorações.
Bem, como dizia, vinha eu carregadíssima, com minhas comprinhas de final de tarde, guarda-chuva numa mão, as chaves na outra e vejo uma mulher perto da minha porta. Uma mulher negra, magrinha, maltrapilha, envelhecida e carregando duas sacolinhas de mercado. O reflexo imediato dentro da mente imunda é o “será que ela vai me pedir alguma coisa, com certeza quer algum dinheiro, eu estou com as mãos ocupadas tarará”, uma metralhadora de pensamentos estúpidos, receosos, egoístas.
Entro e ela não falou nada. Me livrei, eu penso, na sequência de disparates mentais. Começo a subir os degraus e ela me chama: “Madame! Madame, ô madame!” logo madame, que eu detesto. Não quero ser madame, ou talvez queira e não consiga, ou não tenha gabarito.
Respondo: “Sim senhora!” Ela fala por entre as grades do portão: “A senhora pode me arranjar uma colher pra eu comer isso?” Eu posso e vou lá em cima buscar, espere um momentinho; já me tornei menos bruta. Foi o contato verbal, o pedido inusitado, a minúscula reflexão, que me freou a grosseria e a dureza.
Isso deu um mínimo trabalho, subir, colocar as sacolas em algum lugar, me livrar da bolsa, pegar uma colher (peguei uma colher e um garfo, que achei que ela merecia) e descer para entregar. Ela agradeceu e eu virei as costas, livre e ligeiramente satisfeita. Agora ela poderia comer com um mínimo de dignidade.
Começo a subir e ela chama: “Olha! Pega isso aqui. Toma pra você! Pra sua festinha de Natal”(pelo menos eu não era mais madame). Em sua mão uma sacola de plástico com uma caixa de bombons Garoto, fechadinha, acabada de comprar aqui no mercadinho vizinho. Eu tento dizer não, que nada, a senhora não precisa. A mulher insiste e me dá. Eu agradeço e subo.
Atônita, preciso falar com alguém, contar que ganhei um presente de Natal de uma mendiga. Olho a sacola e vejo dinheiro dentro. Sete reais. Desço de novo e vou ao encontro da misteriosa mulher que, sentada na soleira da loja que já fechou, está abrindo uma bandeja de iogurtes de morango. Eu falo que na sacola havia dinheiro, se ela sabia. “Então – diz ela – fica pra você. Eu não preciso. Vou comer isso aqui.”
Eu ainda insisti, mas ela foi de uma firmeza incrível. O dinheiro e os bombons eram para mim, talvez em retribuição pela minha generosidade. Ela não queria mais nada naquele momento, só os iogurtes. Amanhã ela arranja outra coisa. Como na lição do evangelho: “Olhai os lírios do campo, olhai os pássaros do céu!”
Será? A verdade é que é uma pessoa nitidamente doente mental, sozinha pela rua, desgrenhada e velha. Envelhecida. Mas eu considerei o fato. Considerei um presente. Pessoas me aconselharam a dar o dinheiro e os bombons para um pobre. Dou não. É meu presente, para a minha festinha. Vou aceitar e ouvir o conselho dessa mulher que sabe-se lá de onde veio, sabe-se lá se era de verdade. Ganhei dela, a despeito de ter inicialmente me aborrecido com a sua presença. Ganhei dela o presente mais desinteressado que poderia ganhar neste Natal. E o mais tocante.
Boa noite a todos. Eu não consigo parar de pensar que agora mesmo, debaixo desse toró que cai no nosso Rio de Janeiro, essa preta velha generosa estará dormindo ao relento.

4 comentários:

CHRISTINA MONTENEGRO disse...

Seu 'personal-psicopompo' de virada de ano; aproveite...
Nós leitores, tiraremos casquinha, claro...
Certas coisas não acontecem com qualquer um...
Bjs

Decorando disse...

Às vezes os céus nos mandam pessoas para nos ensinar o que é "vida" e as achamos,na nossa lógica preconceituosa,que são doentes mentais. Acho que nós é que somos os doentes. Vc narrando o seu pensamento ao passar pela mendiga, me identifiquei na hora.
Tenho outra história veridica pra vc.
O filho da agente lá da escola foi ao jogo no Engenhão e descobriu que não tinha dinheiro para voltar para Copacabana de ônibus e começou sua trajetória a pé.
No caminho um mendigo lhe pediu dinheiro e ele disse que estava indo a pé pra Copa, pois estava sem um tostão. O mendigo lhe disse:" espera aí garoto, que eu lhe dou o dinheiro da passagem. Vc vai para muito longe".
Apesar do garoto recusar, o mendigo fez questão de lhe entregar o dinheiro.
Que essa boa lama ainda possa ajudar muitas pessoas "normais". :)
Beijos.

Decorando disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Decorando disse...

"essa boa alma"